segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

A menina que falava com as árvores

E se o ditado "filho de peixe, peixinho é" já virou clichê, permitam-me, então, invertê-lo, pois nesse caso eu é que me sinto o peixinho diante desse conto escrito há dois anos por minha filha Ana Rafaela, quando contava seus 13 anos de fecunda adolescência. 

A menina que falava com as árvores

Ana Rafaela Amorim

Quando Sean conseguiu encontrá-la, ela estava parada, de costas para ele, observando algo muito distante, o que era perceptível pela concentração no olhar. Seguindo seu ângulo de visão, ele percebeu que Liz olhava diretamente para o horizonte, que agora possuía um tom azul mais escuro que o resto do céu.
- Liz, o que houve? – Ele se aproximou um pouco, desviando-se dos galhos das árvores.
Ela ficou por um tempo parada, sem responder. Sean podia ouvir sua respiração falhando.
- Não consigo mais, Sean.
- Não consegue o quê? – Perguntou ele, enquanto se aproximava, receoso.
- Eu não posso mais guardar isso só para mim.
- O quê, Liz? Fale! – Ele segurou sua mão. Estava fria como gelo, mas continuava macia e ainda se encaixava perfeitamente no contorno da sua.
- Sean – Ela segurou um pouco a respiração, como se procurasse as palavras ideais ou apenas estivesse tentando remediar o que iria dizer – Toda e qualquer decisão que tomamos vem sempre acompanhada de uma consequência. Você sabe disso, não sabe?
- Sim, Liz. O que você está tentando me dizer? – Sean contornou devagar a amiga, na esperança de ver seu rosto que continuava oculto, desde quando saíram da campina, pelas suas volumosas mechas vermelhas.
- Sean - Ela se virou-se para ele, antes que o menino ficasse de frente a ela. Estava chorando. As lágrimas brilhantes molhavam suas bochechas sardentas – O que eu vou lhe contar agora vai ter uma consequência terrível.
- Como assim? O que houve, Liz? – Perguntou Sean, que agora segurava as duas mãos da garota. Ele tentava imaginar o que poderia ser tão drástico que fizesse uma frágil menina de 11 anos falar algo assim. Tudo o que ele queria era abraçá-la e, mesmo sem saber do que se tratava, garantir que tudo ficará bem.
- Se eu te contar, eu vou ter que ir embora... pra sempre.
- Embora? Por quê? Você não pode ir emb...
- Eu sou um anjo, Sean. – Disse Liz alto e claro o bastante para fazer o menino se calar, confuso.
- O quê? – Ele franziu a testa.
- Eu apareço na vida das pessoas para fazer algo bom. Vim de um lugar totalmente diferente deste mundo que agora estou. – Ela respirou fundo - Enviaram-me para cá porque eu tinha algo a fazer aqui.
- Então qual era a sua missão aqui? – Perguntou Sean, mesmo sem aparentar compreender o que ouvia.
- Salvar a sua vida. – Ela respondeu baixinho, como se tivesse medo das árvores escutarem o que dizia – Mas...
- Mas o quê? – Sean, que permanecera sem reação com a enxurrada de informações que recebera, perguntou aflito.
- Mas os anjos não podem se prender aos humanos – Ela respondeu, e vendo que Sean não compreendera totalmente o que pretendia dizer, continuou - Eles não podem se apaixonar por humanos – Liz fechou os olhos com força fazendo uma lágrima descer por seu rosto, como se sentisse a culpa de suas palavras caindo em sua consciência.
- Se apaixonar?
- E quando eu conto isso pra alguém... eu preciso ir embora.
- E por quem você se apaixonou, Liz? – Ele chegou perto, afagando suas bochechas molhadas pelas lágrimas.
- Por você. – Ela pulou em seu pescoço, rodeando os braços em volta dele. Suas lágrimas molharam o ombro do garoto – Eu te amo, Sean.
Ele a abraçou de volta. Mesmo com o choque que sentiu ao ouvir dela tais palavras, ele percebeu que também sentia o mesmo. Que aquela pessoa que agora segurava em seus braços era a única que o faria completo pelo resto de sua vida. Sem ela ele não estaria ali. Sem ela sua vida nunca mais teria sentido. Sobreviveria, mas oco e inválido, tudo o que ele menos desejava.
Antes que ele pudesse responder sentiu um vento frio rodeando os dois. Era tão gelado e cortante. Sentiu pequenas folhas batendo em seu corpo. Mas ao abrir os olhos viu que eram, na verdade, flores de ipê rosa. Elas voaram em círculos em voltas deles, como se tivessem vida própria. Porém, ao invés de irem embora levadas pelo vento, elas passaram por entre os garotos fazendo-os soltar o abraço.
Liz arregalou os olhos quando as viu: - Não! Não posso ir embora! Por favor, não! – Ela gritava como se implorasse para alguém além de Sean, mas não havia ninguém lá além deles. Ela tentou segurar-se no menino, mas era tarde demais, a brisa a levantava do chão. Liz se debatia tentando agarrar a mão dele.
- Liz! – Sean gritou enquanto tentava, sem sucesso, segurar sua mão.
As flores continuavam a envolvê-la acompanhando cada movimento seu, impedindo-a de tocar Sean. Ela começou a se afastar, ficando cada vez mais alto e longe.
Sean começou a segui-la, gritando seu nome sempre que seu fôlego permitia. Eles estavam saindo da floresta, as árvores cada vez mais dispersas. A luz do sol agora atingia totalmente o chão, mesmo que esta irradiasse de um ângulo quase que paralelo a este. Sean sabia para onde estavam indo.
E foi aonde chegaram. O precipício.
- Sean! – Liz começara a desaparecer, logo após sobrevoar a beira do penhasco.
- Liz, não vá! – Ele corria o máximo que podia. – Eu te amo!
No momento em que disse isso Sean pôde ver um leve sorriso surgindo no rosto da amiga em meio a tantas lágrimas. Pôde ver que Liz de repente parou de lutar contra as forças que a levavam embora. Viu que, finalmente, após minutos de dor e desespero, Liz encontrou o alívio. A sensação de ser amada de volta levou embora Liz Evans em paz. Simplesmente sumiu, junto com as flores e com qualquer indício de que um dia tenha existido.
- Liz... – Sean parou de correr encarando o céu claro, procurando por ela.
Ela se fora. A poeira que pairava no ar vinda das flores que a levaram agora se dissipava.
Liz era sua melhor amiga, era tudo para ele. Agora percebera que amizade não era a única coisa que os ligava. Ela era sua alma gêmea. A única que o completava inteiramente e que naturalmente o compreendia. Mesmo sendo tão jovens tinham encontrado um lar um no outro, um porto seguro. Sua alma gêmea não era perfeita, e ele mesmo acreditava que não era seu príncipe encantado, mas imperfeitos se completavam. Nada mais faria sentido sem sua companhia.
O arfante, confuso e perdido menino se aproximou do limite de terra, e sua mente se afogava em desespero. No fundo sabia que não agiria por impulso ou irracionalmente, seria um feito capaz de impedir de uma vez uma vida de dúvidas e solidão. E, baseando-se na sua crença, encontraria Liz num lugar melhor, onde este mundo doentio não poderia lhes afetar.
Olhou para as rochas que estavam ao pé do penhasco.
Respirou profunda e lentamente.
Fechou os olhos.
E atirou-se.


2 comentários:

  1. Tão jovem e já nos faz mergulhar na alma dos personagens, parabéns!
    É a força do rio que verte de uma rica fonte.
    Grande abraço, do amigo José Maria Cavalcanti.

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  2. Querido amigo José Maria, muito grata pelas palavras. Fiquei muito tocada na primeira vez que li esse texto, logo após ela escrevê-lo, mas, à época ela não quis que eu o publicasse. Agora, creio que sentindo-se mais segura, permitiu, e, lendo novamente, fui tocada mais uma vez. Grande abraço.

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