segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Como um romance - homenagem ao dia do leitor



Em homenagem ao dia do leitor, um trecho do encantador livro “Como um romance”, de Daniel Pennac (Ed. Rocco/L&PM Pocket):
(...)
Capítulo 49
Sim, mas a qual fração do meu tempo disponível vou subtrair essa hora de leitura cotidiana? Aos colegas? À tevê? Às saídas? Às noites passadas com a família? Aos meus deveres?
Onde encontrar o tempo para ler?
Grave problema.
Que não é um só.
A partir do momento em que se coloca o problema do tempo para ler, é porque a vontade não está lá. Porque, se pensarmos bem, ninguém jamais tem tempo para ler. Nem pequenos, nem adolescentes, nem grandes. A vida é um entrave permanente à leitura.
- Ler? Queria muito, mas o trabalho, as crianças, a casa. Não tenho mais tempo.
- Invejo você, por ter tempo para ler! E por que é que essa aqui que trabalha, faz compras, cria filhos, dirige seu carro, ama três homens, vai ao dentista, muda na semana que vem, encontra tempo para ler, e esse casto celibatário que vive de rendas não?
O tempo para ler é sempre um tempo roubado. (Tanto como o tempo para escrever, aliás, ou o tempo para amar).
Roubado a quê?
Digamos, à obrigação de viver.
É sem dúvida por essa razão que se encontra no metrô – símbolo refletido da dita obrigação - a maior biblioteca do mundo.
O tempo para ler, como o tempo para amar, dilata o tempo para viver.
Se tivéssemos que olhar o amor do ponto de vista de nosso tempo disponível, quem se arriscaria? Quem é que tem tempo para se enamorar? E, no entanto, alguém já viu um enamorado que não tenha tempo para amar?
Eu nunca tive tempo para ler, mas nada, jamais, pôde me impedir de terminar um romance de que eu gostasse.
A leitura não depende da organização do tempo social, ela é, como o amor, uma maneira de ser.
A questão não é de saber se tenho tempo para ler ou não (tempo que, aliás, ninguém me dará), mas se me ofereço ou não à felicidade de ser leitor.
Discussão que Topete e Botas resume num discurso demolidor:
À vista do livro que ele tira, (um Jim Harrison, 10/18) Griffes aprova, pensativo:
- É, quando a gente compra um blusão, o importante é que os bolsos sejam do formato certo.”

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

O menino e a chuva

Essa crônica foi publicada no site www.paraibaonline.com.br em junho de 2011. Como não se encontra mais disponível na internet devido a reformulação do layout da página do site, republico-a aqui, comunicando que coloquei em prática a ideia de distribuir livros infantis desde a data da primeira publicação até os dias atuais e não pretendo parar.

O menino e a chuva

Choveu durante todo o dia. Água descendo das nuvens, molhando impiedosamente os telhados das casas, os edifícios, os animais, as pessoas que passam nas ruas, algumas cobertas com seus guarda-chuvas, outras desprotegidas, tentando em vão cobrir-se com uma revista, um jornal ou mesmo um saco plástico. Algumas correm tentando livrar-se do que certamente é inevitável, ficarem molhadas. Há ainda aquelas que não se incomodam, que caminham devagar sob a chuva como se aproveitassem cada gota que cai em seus corpos até que, encharcados, passam a, também, verterem água, que corre até o chão.
Paro o carro num sinal. Aproxima-se um garoto de aparentes dez anos, a pedir-me uma moeda, enquanto olha para o interior do veículo com curiosidade, talvez esperando ver algo que lhe interessasse e pudesse pedir-me. Está todo molhado, não aparenta sentir frio, imagino o quanto já se acostumou àquela situação lastimosa.
Ele cola o rosto na janela, a chuva fina caindo sobre seu corpo e eu vejo em seus olhos o calor que ele resguarda na alma. Baixo um pouco o vidro, passo-lhe duas moedas, ele olha e guarda no bolso do calção. Pergunto se estuda, ele me olha desconfiado e diz que sim, estuda de manhã, e vai se afastando para abordar outro motorista enquanto o sinal não abre.
Fico olhando-o pelo retrovisor. A mesma atitude curiosa, os mesmos olhos pidões, a mesma indiferença à chuva e ao frio. Desta vez não teve sucesso, não ganhou nada. O sinal abriu e ele correu para o meio-fio, batendo a mão no bolso cheio de moedas e sorri, provocando outro menino ainda menor que ele.
Alguém buzina atrás de mim porque eu ainda estava parada, olhando o garoto e não percebi que o sinal estava verde. Segui em frente mas meu pensamento ficou lá atrás, com aquele menino molhado e aparentemente indiferente à própria indiferença da sorte, que não se abala com a chuva e o frio, que construiu uma carapaça em volta da alma para protegê-lo das intempéries da vida, o que o torna malandro, esperto, oportunista mas que não consegue afastar a sua imagem de criança.
Penso onde estaria aquele menino se suas oportunidades tivessem sido outras. Penso no quanto fazemos por nossos filhos para que aproveitem a vida e em que eles diferem daquele garoto? Na essência são bem parecidos mas a maneira como circunstancialmente foram apresentados à vida foi decisiva.
Isso onera ainda mais a minha responsabilidade social. Não basta dar uma moeda. É preciso dar alento e existem muitas maneiras de se fazer isso. Da próxima vez que encontrá-lo, junto com a moeda vou dar-lhe um livro infantil. Não sei se será bem recebido mas sei que ele não ficará indiferente. Quem sabe o livro não fura aquela couraça e lhe traz um arrepio de prazer? Vou pagar pra ver, afinal, nunca saberei se não o fizer.