sábado, 12 de março de 2011

Maria

- Qual o seu nome?
- Maria.
- Maria de quê?
- Maria, só Maria.
Até isso a sorte lhe negara. Nascer só Maria, sem mais nada a lhe acompanhar. Poderia ter vindo das Graças, quem sabe lhe abençoasse, ou ainda de Fátima, das Neves, da Anunciação, até Maria José ela aceitaria de bom grado, apesar de não gostar da ideia de nome de Homem junto com nome de mulher. Só não queria Maria das Dores, porque se tinha algo demais na sua vida eram dores, de todo tipo e intensidade.
Desde que se lembrava que era gente, embora às vezes chegasse a duvidar que fosse mesmo, ela conhecia algum tipo de dor.
Dor da perda do pai, quando, há dez anos, ele partiu para trabalhar na capital e morreu atropelado na rua em frente à rodoviária, no mesmo dia em que desembarcou por lá. Ia talvez com a cabeça cheia de sonhos e não percebeu o carro que se aproximou velozmente e o arrebatou de seus pensamentos quando ele atravessava a rua em passos lentos, o olhar perdido em planos do que compraria com o parco salário que iria receber.
Dor pela dor da mãe, que ficou sozinha com seis filhos pequenos, sendo ela, Maria, a mais velha, embora esse título parecesse uma ironia diante dos seus oito anos recém completados e sua silhueta franzina.
Dor da fome, do desespero, da humilhação, do desengano, da solidão. Todas as dores Maria já sentiu, ou melhor, quase todas. Faltava a dor do parto mas essa ela já começara a sentir desde a noite passada, quando a barriga já tão esticada, parecia querer rasgar-se para trazer ao mundo aquela criança.
- Endereço? – a atendente do hospital perguntava sem sequer tirar os olhos do papel à sua frente.
- Sítio das Flores.
- Onde fica?
- São José da Mata.
- Nome do pai?
- Sei não senhora.
Foi a única vez em que a atendente levantou a vista para olhá-la mas não passou de alguns segundos.
Ela não estava mentindo, não sabia mesmo o nome do infeliz que lhe engravidara mas não porque ela fosse dessas que vivem fazendo essas coisas por aí. Na pobreza quase miserável da casinha, a mãe e os irmãos ocupavam-lhe todo o seu tempo e sua energia, não tinha amigas. Ela era virgem, nunca tinha tido um namorado nem mesmo dado um beijo em ninguém. Pra falar a verdade, nem sabia direito o que era um simples beijo no rosto. A sua vida sofrida não resguardara momentos de carinho e afeto entre os tantos irmãos. Era uma verdadeira competição, uma disputa diária por mais um dia de vida, mesmo ela sendo tão desgraçada.
Mas um dia apareceu por aquelas bandas um rapaz bonito, entregando umas compras feitas no armazém do seu Joca. Ele parecia ter uns vinte anos, estava numa moto, parou para pedir informações e achou simpática aquela garota tão novinha mas com olhos tão profundos, como se pudesse abarcar o mundo com eles.
Deu-lhe um sorriso e agradeceu-lhe a informação. Saiu, deixando para trás um jovem coração estremecido, violado na sua inocência, desperto pelo calor da puberdade que queimava-lhe o peito.
Depois daquele dia, uma vez ou outra, o rapaz passava de moto pela frente do sítio, devagar, olhando com a esperança de revê-la, e por mais de uma vez a viu desdobrando-se em cuidados com os irmãos pequenos, arrancando mato do pequeno e seco roçado, ou simplesmente sentada no batente da porta, com o olhar jogado ao léu.
Numa dessas vezes ele decidiu parar. Buzinou. Ela olhou-o intrigada e foi até ele. Mal falaram-se. Ele perguntou se ela queria dar uma volta. Ela olhou em volta e depois assentiu. Subiu na moto meio sem jeito e pôs os braços em volta dele, sentindo o contato queimar sua pele e incendiar seu peito.
Ele deu a partida e foram em frente. Ela experimentava uma sensação estranha, como se fosse uma folha solta na brisa da tarde e começou a rir. Ele achou graça de sua alegria e riu também. Os dois seguiram rindo e divertindo-se um com o outro, até que ele parou em uma campina afastada.
Desceram da moto e sentaram-se no chão. Ele não tinha mais que alguns biscoitos mas dividiu com ela. Enquanto ela comia ele ficou a observá-la. O vento soprava de leve o seu cabelo ondulado e uma mecha insistiu em pousar no seu rosto. Ele afastou-a com a ponta dos dedos. Ela estremeceu. Olhou-o nos olhos e o que viu ali a surpreendeu. Não sabia se tinha medo ou se gritava de alegria, sabia apenas que era intenso o suficiente para deixá-la sem fôlego.
Ele tomou seu rosto entre as mãos e beijou-a. A princípio ela não sabia o que fazer mas a natureza sabiamente a conduziu. Entregue aos carinhos do rapaz, ela não imaginou outra maneira de se sentir tão querida, tão desejada.
Aquilo acontecera outras vezes, sempre assim, chegavam silenciosos e se amavam, depois iam embora, sem conversa. Até que um dia a mãe a achou com a barriga um pouco inchada e, desconfiada, passou a vigiá-la até descobrir os encontros.
O rapaz pediu demissão do armazém e desapareceu no mundo. Ela ficou sozinha, largada num canto da casa a ouvir as lamúrias da mãe de que não bastava ter seis bocas para alimentar e já lhe trariam mais uma.
Ela fazia o que podia para ajudar na casa mas a miséria era grande. Quando a barriga começou a atrapalhar os afazeres, passou a sentir-se realmente um estorvo.
Ontem começou a sentir as dores do parto. Conseguiu uma carona e foi sozinha para a maternidade pública de Campina Grande. Nem falou com a mãe e nem deixou bilhete, até porque não sabia ler nem escrever.
- Fez o pré natal?
- Fez o quê? Natal? Não, num foi no Natal.
- Perguntei se foi a algum médico para acompanhar a gravidez, se fez algum exame.
- Fui não, senhora, nem fiz exame de nada não.
A atendente suspirou, sacudindo a cabeça para os lados. Mais uma, pensou.
Separou os papeis e passou para a assistente social.
A dor apertou mais. Ela gemeu baixinho, como quem teme incomodar o outro com seu próprio sofrimento.
A assistente social apareceu, olhou a ficha e chamou-a para uma sala.
- É verdade o que você disse na entrevista?
- É, sim senhora.
- Tem certeza disso? Talvez se arrependa.
Ela gemeu mais alto, quase um uivo.
- Vou encaminhá-la à sala de pré-parto. Quando a criança nascer voltaremos a conversar.
Maria foi levada para uma sala onde havia outras mulheres aguardando a sua hora. Se a dor do parto era a única que ela ainda não conhecia bem, então tiveram toda uma noite para estreitarem laços. Apenas no início da manhã seguinte ela foi encaminhada para a sala de parto.
Estava sozinha, doída, machucada e ainda tinha que fazer força para que aquela criança pudesse vir ao mundo. Entre contrações, gritos e choro, o bebê nasceu.
Ela fechou os olhos assim que ouviu o choro da criança.
- Eu num quero vê o neném.
- Nem quer saber se é menino ou menina?
- Num precisa, num quero.
- Que mulher sem coração. – sussurrou a enfermeira para a médica.
Maria apertava os olhos com tanta força que eles doíam. Não queria ver o bebê, nem mesmo saber o sexo. Temia passar o resto da vida procurando um menino ou uma menina nos rostos de todas as crianças que encontrasse. Temia sonhar com ele. Alguém a chamando de mãe e cobrando-lhe todas as coisas bonitas que uma criança deve ter e que ela nunca poderia lhe dar.
Virou o rosto e chorou em silêncio, sentindo em seu peito uma dor diferente das que já conhecia, uma mistura de saudade e desgosto por um futuro que não podia lhe pertencer simplesmente porque o passado já o havia condenado e o presente se calara.

5 comentários:

  1. MABEL,
    Sou sua mais nova seguidora. Muito
    prazer!

    O fascínio de CONTAR e de emocionar o
    leitor.MARIA com suas dores me emocionou.

    Voltarei outras vezes para conhecer outras histórias.

    um grande abraço,
    Cristina Sá do blog:
    http://cristinasaliteraturainfantilejuvenil.
    blogspot.com

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  2. Cristina, obrigada pelo carinho. Vou visitar seu blog. Bjo.

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  3. ...E no fim das contas todas nós temos um pouquinho de Maria: ingênuas, sonhadoras, corajosas! Parabéns pelo texto e toda emoção de cada palavra. Essa palavra que nos conta, que nos mostra e nos alimenta.
    Abraço grande!

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  4. Rejane, Obrigada pelas carinhosas palavras. Escrever é uma necessidade da alma, você bem sabe disso, não é? Um beijo!!

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  5. Gosto de lê contos. É como contemplar uma charge, o essencial registrado e transmitido em um tempo equivalente a um instante, um olhar intenso e focado, um respirar profundo. Nesta estória da Maria, não havia mesmo necessidade de acrescentar outra palavra ao nome, sinto a presença de alguém a quem foi negado quase tudo que a cultura propícia. Por saber que ficando com ela, o recém nascido teria destino igual, ou pior, Maria o liberta ao tempo em que não quer vê-lhe a face. As palavras da assistente social já anunciaram o que lhe seria oferecido: renunciar a condição de mãe. O estado, mediante a ação da assistente social, cuidaria de encontrar uma "melhor" solução. Quem sabe, uma família tradicional ou outra dentre as diversas espécies de famílias contemporâneas. Em um enredo tão sombrio, restou a Maria fragmentos de ternuras e sexo, com alguém do qual nem sabia o nome e que, na primeira oportunidade, partiria para um destino incerto. Parece coisa fruto da imaginação, de tão absurda que é. Mas, não é. Para que o leitor não caia nesta interpretação, a escritora faz precisas citações dos lugares e instituições nos quais a vida "vivida" de Maria ocorre. Conto desta qualidade reforça a minha predileção pelos contos. Parabéns, estimada Mabel.

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