Escrevi esse conto em abril de 2014 para participar de uma antologia que acabou não acontecendo. Achei-o agora em meio a outros textos num arquivo do computador. Sacudi, então, a poeira digital que o encobria e resolvi publicá-lo aqui, retomando a atividade desse espaço que, assim como ele, o conto, também foi esquecido no mesmo período e agora ressurge com promessas de novas e constantes publicações.
Por mais leituras! Por mais café com resenhas!
Desencanto
Os olhos
eram de um castanho intenso. Os longos cílios curvavam-se para fora, emoldurando
o que parecia ser um convite e sua forma amendoada de seus olhos a deixava
com um ar felino, provocante. Era isso o que os atraía, essa era a isca, eles
diziam.
Ela sempre
acreditou. Não que não se achasse atraente, não, isso não. Tinha uma pele alva
e macia, o rosto comprido, mas não magro, antes cheio, um pouco anguloso. O
nariz até que era comum, mas a boca... Ah, a boca! Era pequena e de lábios
carnudos, suculentos como um caju maduro, eles diziam isso também, a mulher dos
lábios de caju.
O
corpo, então? Nem tão alta, nem tão baixa, magra, mas com quadris largos e
cintura fina e uma boa camada de carne nos lugares certos, bons de apertar,
como eles diziam. É verdade que, às vezes, eles apertavam além do suportável,
até machucavam, mas não eram todos assim.
E o
que dizer das pernas? Coxas volumosas e bem torneadas levavam os incautos a perderem
horas admirando-as enquanto bebiam compulsivamente sentados às mesas.
Não
possuía mais o ar inocente com o qual chegara ali, na década de 40, aos quinze
anos, vinda da cidade de Esperança, uma ironia do destino. Vinda não por
vontade sua, mas por ter sido expulsa pelo pai porque não era mais a garota
pura e virgem que ele imaginava. Mas ele não fez isso por se sentir ferido em
sua estúpida honra de pai. Na verdade ele sentiu-se ferido em sua não menos
estúpida honra de macho.
No
entardecer da véspera de sua partida, ela deitou-se mais cedo apenas para
descansar um pouco dos afazeres do dia e, extenuada, acabou adormecendo e se
esquecendo de trancar a porta do seu quarto. O pai chegou bêbado no meio da
noite, como fazia todas as noites, e, como fazia todas as noites, empurrou com
a mão a porta do seu quarto. Surpreso ao não encontrar resistência, abriu-a,
entrou e trancou-a. Olhou para ela, adormecida, os cabelos espalhados
displicentemente no travesseiro, o cheiro de suor no ar, um cheiro doce, o cheiro
dela. Sentiu no seu sexo um fogo intenso a lhe queimar as entranhas.
Ele
não lhe deu oportunidade de sequer reagir. Possuiu-a ali, sem desculpas nem
remorsos, afogado numa volúpia suja e libertina. Ela aguentou calada, sequer
chorou naquele momento. Quando ele, saciado, saiu de cima dela e, desconfiado,
procurou no lençol o sinal de sua conquista, percebeu que não tinha sido o
primeiro e aquilo queimou suas entranhas ainda mais fortemente que o desejo
impuro.
Ela
mal sentiu a primeira bofetada. Ainda estava entorpecida pelo asco daquela
conjunção. Aguentou a violência física com o mesmo silêncio com que suportou a
sexual. Sabia que gritar acordaria a mãe doente que dormia no quarto ao lado e
não queria lhe causar a dor de tanto desgosto.
Sentia
dor, mas também uma mórbida satisfação por ver a frustração e a raiva estampada
naqueles olhos furiosos. Já havia percebido o quanto ele a desejava. No começo
não quis acreditar, mas as passadas de mão em suas pernas por baixo da mesa, as
carícias em suas nádegas quando passava por perto foram suficientes para tornar
críveis seus mais suspeitos temores.
Não
podia contar para a mãe, já fragilizada por uma tuberculose mal tratada. Passou
a trancar a porta do quarto à noite desde os treze anos, mas sentia que isso
não seria o bastante. Sabia, então, que isso acabaria acontecendo, mais cedo ou
mais tarde. Então resolveu que, já que não poderia evitar, viveria sua primeira
vez com prazer. E entregou-se, há quase um ano, ao jovem e recém-formado
professor da escola estadual, que tinha os olhos da cor do céu e sabia falar
palavras bonitas e mansas ao seu ouvido. Deitou-se com ele muitas e muitas
vezes, tantas que nem saberia contar, mas nunca o suficiente para prepará-la
para o horror desse momento.
Depois
que seu pai resolveu sair do quarto, já cansado pelo esforço do coito e da
surra que lhe aplicara, ela, enfim, pressionou o rosto no travesseiro e urrou,
em meio ao choro convulsivo.
O amanhecer
ainda encontrou-a acordada, encolhida como num casulo. Apesar de desperta,
assustou-se quando a porta do quarto foi aberta de repente e o pai entrou, sem
olhá-la nos olhos. “Arrume suas coisas”, ele disse, “não quero vagabunda na
minha casa”. Ainda tonta, ela catou suas poucas roupas e alguns objetos
pessoais e se foi. Nem se despediu da mãe, o que poderia dizer a ela? Isso doeu
mais que a surra.
Chegou
à pensão de Judith, na Rua Cinco de Agosto, em Campina Grande. Aprendeu rápido
que pensão não era o nome mais adequado para aquele lugar, que aquela região
chamava-se Manchúria e que ali seria escrita a sua história. A casa era
simples, pois os melhores “cabarés” ficavam na “Rua Boa”, como ficou conhecida
a Rua Manoel Pereira de Araújo. Mas, naquele momento, o melhor lugar era aquele
que lhe abria as portas.
Já
estava grávida, a criança já germinava no seu ventre sem que ela sequer se
apercebesse. Algumas semanas após a sua chegada, os fortes enjoos denunciaram à
Judith que a sua nova menina já viera “cheia”. O primeiro ímpeto foi mandá-la
embora, afinal, seu ramo não era a caridade e, além disso, como se não bastasse
concorrer com a pensão de Zefa Tributino, depois que o Cassino Eldorado abriu
suas portas, os negócios sofreram uma concorrência que ela considerava desleal,
pois até “meninas” vinham do Recife para “trabalharem” no lugar, nos finais de
semana.
Mas
seu coração embrutecido pela vida ainda era de mulher e guardava num recanto um
grama de compaixão, o bastante para aceitá-la até que a criança nascesse, mas
não tanto para permitir que ficasse junto à mãe. O bebê nasceu pequeno, com
baixo peso, talvez prematuro. Ela não tinha certeza da sua paternidade.
E
foi com uma dor esquisita, um misto de amor e medo, que se apartou do filho
recém parido. O coração inquieto sangrava, mas temia um dia reconhecer naquele
rosto, os traços do seu próprio pai.
A
vida seguiu e a moça dos lábios de caju viu passar por sua cama tantos quantos
passaram por aquelas ruas. Com o tempo, não adquiriu apenas rugas e cicatrizes,
como a que João Belo deixou na palma da sua mão direita, quando ela levantou-a
na altura do rosto para defender-se de uma garrafa quebrada que ele havia
atirado em sua direção. O tempo também a ensinou a esquecer, a jogar embaixo do
tapete da vida as mágoas, a saudade, a dor. Mas não a esperança. Sonhava com o
dia em que teria uma vida só dela, sem precisar dividi-la com mais ninguém.
Quando
ela já passava muito dos seus trinta anos, uma noite apareceu entre os
frequentadores da pensão, um senhor distinto que morava na Rua João da Mata,
com um rapazote, sobrinho seu, a quem o homem atribuía virgindade tardia e uma
timidez típica de quem morava em cidade muito pequena, e queria a mais formosa do
Bairro Chinês para assumir a missão de apresentá-lo ao amor. Judith chamou-a,
pois, apesar da idade, ela ainda era a mais doce e agradável da casa. Era algo
comum na época, os garotos aprenderem a arte de amar com as mais pacientes.
O
rapaz era muito acanhado, ela conversou um pouco para tentar deixá-lo à
vontade. Aos poucos, ele foi se ambientando e ela, enfim, levou para um dos
quartos. Foi tirando a sua camisa e passando as mãos ásperas, mas de unhas
pintadas no seu peito, seguindo em direção a sua nuca, onde mergulhou os dedos
nos fios curtos do seu cabelo macio. Beijou-o longamente, os lábios de caju,
úmidos e ainda doces, o faziam soltar curtos gemidos enquanto a pele se
arrepiava. Ela o deitou de bruços na
cama ainda vestido com as calças e foi dando beijos no seu dorso. Chegando à
cintura, ao afastar o cós da roupa, viu uma mancha escura no lado direito.
Sentiu o peito gelar e o coração parar de bater. Baixou a calça com violência
e, lívida, viu ali o mesmo sinal que já tinha visto há tantos anos nas costas
do seu pai.
Ríspida,
mandou o jovem se vestir e sair dali imediatamente. Confuso e, ainda
entorpecido, ele se viu praticamente empurrado pra fora do quarto. Logo ela ouviu
gritos lá fora, o homem que havia trazido o rapaz e Judith gritavam impropérios
e ofensas mútuas. Depois se seguiu o silêncio. Judith entrou no quarto e a viu,
sentada na cama, ainda pálida e imóvel como uma estátua. “Era ele”, a mulher
ouviu-a dizer, com uma voz cheia de amargura, “Era ele, Judith, o meu menino”.
Judith fechou a boca entreaberta e engoliu as palavras desaforadas que
pretendia dizer quando entrara ali. Fitou-a por alguns minutos, tentando
imaginar o turbilhão de sentimentos que se passava no peito daquela criatura
desafortunada, depois saiu e fechou a porta, ordenando às outras que a
deixassem em paz.
O
dia seguinte amanheceu sereno, contrastando com os acontecimentos da noite
anterior. Ela demorou a sair do quarto. Judith deixou-a descansar por todo o
dia. Ao entardecer, resolveu que já era hora dela enfrentar o que passou e
recomeçar a vida. Encontrou fechada a porta do quarto. Bateu, chamando-a e não
obteve resposta. Aquilo era um mau presságio. Chamou dois homens que já haviam
chegado e bebericavam doses de conhaque barato e mandou-os arrombarem a porta.
Já sabia o que iria encontrar, mas, mesmo assim, a cena a chocou e comoveu. Lá
estava ela, o rosto azulado, os lábios de caju entreabertos deixando exposta a
língua arroxeada, os olhos amendoados sem luz, fitando o vazio, o corpo
parecendo flutuar, pendurado por duas meias de mulher, compridas e finas,
enroladas e amarradas, uma ponta numa madeira de linha do teto e a outra, no
pescoço alvo e fino. No chão, uma cadeira caída e, espalhados ali, os
estilhaços da sua alma.