Discurso de posse de Mabel Amorim na Academia de Letras de Campina Grande, em 09 de agosto de 2013
Desde
os tempos mais remotos que o homem sempre se deleitou em ouvir histórias.
Fossem elas relatos de acontecimentos ou frutos da imaginação, as narrativas
sempre atraíam, intrigavam, encantavam. Aquele que narrava, certamente logo deve
ter percebido o poder de sedução e encantamento das palavras que, pronunciadas
na cadência certa, levavam seus ouvintes a orbitar a sua volta, dedicando-lhes
toda a sua atenção.
Assim
tem sido esse fascínio até os hodiernos dias. Quem de nós, quando criança,
nunca sentou à noite aos pés da avó, do avô, da "bá", e ouviu, de olhos bem
arregalados, como se a audição tivesse conseguido a proeza de para lá se mudar,
as histórias de fadas, de príncipes e princesas, de animais que falavam e
aquelas de fantasmas, bruxas e assombrações, temíveis mas ansiosamente
esperadas e estrategicamente deixadas para o final, pois ninguém tinha coragem
de pedir “mais uma”. E depois lá íamos para a cama, lívidos e pávidos, com a
mais convicta certeza em nossos puros corações de que havia um esqueleto no
guarda-roupa, um lobisomem debaixo da cama e o homem do saco atrás da porta e
de que não sobreviveríamos àquela noite fatídica.
Mas
o amanhã sempre chegava e com ele o desejo de sabermos mais. E passamos a
interpretar as histórias, a buscar, nós mesmos, naquelas letras, naquelas
palavras, naquelas frases, aquele encantamento transmitido pelo contador. E ele
veio, só que agora, pensamos, o narrador tornou-se cativo, sua voz é nossa voz,
seu pensamento flui em harmonia com o nosso, podemos, enfim, dominar a cadência
da história. Ledo engano. Mergulhados no enredo, somos tragados pelas páginas
traiçoeiras que nos arrastam às profundezas da trama, de onde não saímos
ilesos. E entre sono e compromissos atrasados, ante às reclamações dos que não
compreendem esse misterioso universo paralelo da literatura, emergimos com a
promessa de que já estamos indo, só mais
uma página, por favor.
A
literatura é assim: um perder-se, buscar-se, encontrar-se, encantar-se, e de novo
perder-se. Ela é viva e é vida, é ser e energia, é paradoxalmente perene e
renovável, é fuga e encontro, é um instrumento e um fim em si mesma. A
literatura é um dos refúgios da alma.
E
de tanto amá-la, passei a dar vazão às histórias que se formavam na minha
mente, escrever, pois, tornou-se uma necessidade irresistível. E entre poemas,
contos, crônicas, romances, meu coração passeia afoito, cônscio do destino que
escolheu quando, ainda tão jovem, deixou-se arrebatar pela crueza singela das secas
vidas de Fabiano e Sinhá Vitória, pela dor da perda da cachorra Baleia, pela
força e vitalidade que o mestre Graciliano Ramos, o velho Graça, impunha com
precisão as suas narrativas.
Tomar
posse na Academia de Letras de Campina Grande não me deixa apenas feliz e
orgulhosa pela honraria de passar a fazer parte de uma confraria tão seleta,
mas também por ser essa a entidade que representa a literatura da minha cidade.
Sim,
minha cidade: Campina Grande. Sinto-a tão minha quanto sinto ser meu o ar que
respiro pois, embora difuso, pertencente a todos e a ninguém, quando o inalo,
ele passa a fazer parte de mim e não sai senão transformado.
É
verdade que nasci em Maceió, capital do estado de Alagoas e sinto pela minha
terra mãe um amor imenso. Como esquecer dos primeiros amigos, das brincadeiras
de rua, de correr com os pés descalços, de chegar em casa com os joelhos
ralados, de subir no pé de goiaba do quintal e passar horas conversando e
inventando brincadeiras, tal qual o personagem Zezé e seu pé de Laranja Lima,
do saudoso José Mauro de Vasconcelos? Como esquecer o primeiro amor, platônico,
é bem verdade, mas que me tirava a voz, o ar e o chão quando me deparava com
seu alvo na escola, um rapazote comprido, magrelo e de grandes orelhas mas tão
belo aos meus olhos pueris? E o primeiro “fora”, o primeiro beijo, a primeira
decepção, trágica, dramática e incurável como todas as decepções juvenis? E a
grata surpresa de que, dia após dia, o tempo se encarrega de diluir as dores e
nos preparar para vivermos novos momentos?
Impossível
tirar da minha mente e do meu coração os bailes da adolescência, as serestas
com os amigos, o dedilhar nas cordas do violão, as vozes diversas vibrando
entoadas, celebrando a alegria de estarmos ali, juntos, sem necessidade de
justificativas, pelo único motivo de assim o querermos.
E
o que restou então para amar Campina Grande? Muita, muita coisa. Vim para cá
para trabalhar, havia sido aprovada no concurso do BANESPA – Banco do Estado de
São Paulo, não havia sido uma escolha mas uma oportunidade. Viajava para Maceió
sempre que podia para aplacar a saudade. Fui aprendendo a amar Campina pela sua
generosidade, seu coração de mãe sempre acolhedor, escancarado. Não foi um amor
à primeira vista, confesso, embora fosse poético afirmar isso, mas não, não
foi. Campina foi se mostrando para mim aos poucos, nunca quis me enganar com
suas belezas pois revelava também suas dificuldades com uma sinceridade ímpar
como se parecesse me dizer: essa sou eu,
genuína, e você, quem é? E num belo amanhecer, quando eu voltava de Maceió
após passar mais um de tantos fins de semana, ao olhar pela janela do ônibus e
enxergar Campina ainda sonolenta, envolta na bruma da manhã, eu percebi o
quanto já pertencia àquela cidade. E como quem contempla a pessoa amada
adormecida ao seu lado e sente o quanto aquela presença transmite segurança e
ternura, assim fiquei eu, olhos marejados, sabendo que não estava mais voltando
para a cidade onde trabalhava, estava na verdade voltando para o lar, para o
meu lar, para a minha Campina.
Diante
disso, rogo aos senhores que nunca, nunca me façam a seguinte pergunta: - De qual cidade você gosta mais, Maceió ou
Campina Grande? É de uma crueldade imensa. Como perguntar a uma mãe de qual
filho ela gosta mais ou a um filho se gosta mais do pai ou da mãe sem lhes
causar uma angústia no peito e na alma? Caso insistam em perguntar, receberão o
silêncio como resposta pois sinto um amor imenso pelas duas, testemunhas e
partícipes da minha história. E esse sentimento, tão semelhante em intensidade
e tão distinto pelas vivências, irmana essas duas cidades em meu coração, pois
se em Maceió nasci e vivi os verdes anos da minha vida, se é para lá que meu
pensamento voa sempre que nele aflora a saudade da menina magrela de pés
descalços, foi em Campina Grande que essa vida ganhou sentido, onde conclui
meus estudos, onde formei a minha família, onde aprendi e aprendo todos os dias
o que é companheirismo convivendo com um ser tão especial chamado Paulo Cesar,
onde gerei minhas filhas, Ana Rafaela e Ana Gabriela, bênçãos eternas, e onde
encontrei minha vocação literária.
A
árvore frondosa deve a doçura de seus frutos à rica seiva extraída e elaborada
por suas raízes. Abençoada seja a terra que serve de berço amoroso para seus
filhos.
Mas
essa dualidade não é um privilégio da minha pessoa. Muitos que aqui estão
presentes também compartilham esse sentimento. Aqui chegaram, forasteiros como
eu, saudosos de suas terras, e foram construindo, alguns reconstruindo, suas
vidas. Abençoada seja a terra que acolhe com amor os estrangeiros que a
procuram.
Sinto-me à vontade, então, para, ao ocupar a
cadeira de número 9 desta Academia, homenagear seu patrono Clementino Procópio,
e sua pioneira, Déa Cruz, por comungarmos, além da dedicação apaixonada pelas
letras e pela busca do conhecimento, o coração dividido e pleno, como bem
ilustrado nos versos do saudoso Gregório de Matos:
“O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é
parte,
Mas se a parte o faz todo,
sendo parte,
Não se diga, que é parte,
sendo todo.”
Nascido
na fazenda Chéus, no município pernambucano de Bom Jardim, em 1855, Clementino Gomes
Procópio iniciou-se como seminarista aos quinze anos, não levando os estudos
adiante por falta de vocação eclesial. Sua natureza invocava outros ares e
assim, ele foi para a cidade de Batalhão, hoje Taperoá, na Paraíba, e lá fundou
uma escola. A “grande seca” de 1877 fez com que o jovem, tal qual o Fabiano de
Graciliano, mas, felizmente, mais bem sucedido, saísse em busca de outra
cidade, e foi aqui, em Campina Grande, que ele aportou.
Político,
jornalista, fez da educação seu ofício maior. Fundou o Instituto São José, uma
escola particular que funcionava como internato e externato, no bairro de São
José. Em 1888 foi classificado em primeiro lugar no concurso público de
professor primário e foi nomeado professor público vitalício da cidade pelo
Presidente da Província da Paraíba, Silvino Avidio Carneiro da Cunha, o Barão
do Abiaí, assim nomeado pelo Imperador D. Pedro II.
Austero
e corajoso, não lhe faltaram os brios quando, por motivos de divergência
política, o então presidente do Estado, Castro Pinto, cedendo à pressões
externas, resolve transferi-lo para o município de Batalhão. Os dois primeiros
ofícios comunicando a transferência foram jogados calmamente por Clementino na
cesta de papéis. Assim narra Ronaldo Dinoá, em Memórias de Campina Grande, 1º
vol. p. 232:
“Ao chegar o terceiro, o professor
Clementino não teve dúvida, pegou do papel e da caneta, redigiu um ofício,
remeteu para o Presidente da Paraíba, transferindo-o para o Estado do Maranhão.
Não se sabe qual a reação do
Presidente ao receber o ofício do ousado professor do interior. O fato é que
nenhum ofício mais foi expedido. Depois de muito tempo, o Dr. Castro Pinto veio
a Campina Grande. A Comissão encarregada da recepção solicitou que o Professor
Clementino, como homem culto que era, fizesse a saudação ao Presidente. Ele,
pessoa de grande coração e elevado espírito, aceitou a incumbência. Fez um
belíssimo discurso e o governante, encantado com sua eloquência, perguntou: ‘
Quem é esse moço?’ Responderam: ‘ é o professor Clementino Procópio’. O
Presidente fez questão de que ele lhe fosse apresentado, tornando-se os dois,
grandes amigos após essa data.”
Essa
história curiosa também é contada por William Tejo, mudando-se alguns
personagens, mas em ambas evidencia-se o caráter e hombridade do cidadão
Clementino Procópio.
A
caridade era um traço forte de sua personalidade. Não foram poucos os pobres e
famintos acolhidos em sua casa, para com eles dividir o café, o pão e um pouco
de humanidade. Ao conversar com o ilustre médico Dr. Severino Cruz, sobre a
necessidade de um terreno para construção de um hospital em Campina Grande,
doou a área para tal fim, e hoje, o Hospital Pedro I é sua digna herança para
nós, cidadãos campinenses.
Em
agradecimento à homenagem prestada por seus ex-alunos quando completou 50 anos
da abertura de sua primeira aula, em junho de 1928, proferiu as seguintes
palavras:
“Dou a alma a Deus, em quem
creio piamente, dou meu corpo a meus discípulos, inclusive filhos e netos, dou
a minha família o meu nome e a minha memória”.
Em
1935, aos 80 anos, falece Clementino Procópio. Quase toda a população da cidade
acompanhou seu enterro.
Nas
palavras do Dr. Ascendino Moura, o adeus ao mestre:
“O professor Clementino Procópio morreu.
Desapareceu no espaço. Mas parte dele ainda vive entre nós e em nós, no tempo e
através dos séculos, há de perdurar. É a parte do seu espírito que ele deu a
cada um de nós e que jamais será esquecida, porque ficou fazendo parte de nós
mesmos. E essa parte é que há de permanecer eterna.”
Que
aprendamos com seu exemplo a sermos mais generosos desde os mais pequeninos
gestos.
Generosos
como assim o foi Déa Borba Cruz.
A
moça paulista de Araraquara tornou-se a dama de Campina, nas palavras de Xico
Nóbrega. Filha de Índio Brasileiro Borba e Ernestina Cavalcanti Belo, Déa
nasceu no interior de São Paulo em 1929, mudando-se, ainda menina, com sua
família para a capital, onde ela e os irmãos foram estudar nos melhores
colégios. Entre os garotos estava o primo Aroldo Cruz, e desse convívio surgiu
a admiração e um grande amor.
Ao
formar-se em Pedagogia em 1948 e indagada pelo pai sobre que presente
escolheria, não titubeou: queria conhecer a Paraíba, os familiares e
reencontrar Aroldo, que àquela época estudava medicina em Recife. O encontro só
consolidou o que aqueles corações já sabiam: casaram-se dois anos depois e
firmaram residência em Campina Grande.
Mas
além do amor devotado ao marido, Déa Cruz também possuía outra grande paixão: a
educação. Quando começou a ensinar em casa a qualquer um que a procurasse,
Aroldo construiu um colégio junto a sua casa. Surgiu o “Colégio Santa
Terezinha”, depois “Estelita Cruz” e enfim “Colégio Santa Cruz”.
Sua
inteligência e dedicação à educação campinense não passaram despercebidas. Logo
foi convidada para ocupar diversos cargos na Prefeitura de Campina Grande. Foi
diretora do Teatro Municipal, Secretária de Educação e Cultura. Na educação foi
Diretora, Orientadora Educacional e professora de muitos colégios da cidade.
Foi
a única mulher a participar da Comissão do Centenário de Emancipação Política
de Campina Grande e teve a honra de ser escolhida como organizadora da festa do
Centenário da cidade.
A
cronista surgiu quando o jornalista Epitácio Soares descobriu sua veia
literária. Sob seu estímulo e apoio, Déa escreveu e publicou a primeira crônica
e então não parou mais, levando sua visão do cotidiano aos leitores dos jornais
diários.
O
Dr. Aroldo Cruz já sabia que tinha ao seu lado uma amorosa esposa, uma mãe
dedicada e se orgulhava em ver sua habilidade desenvolta com as letras. Suas
crônicas traduziam a beleza da já tão sua Campina Grande, seu povo, suas
personalidades, seus cantos e recantos. Os filhos ausentes da cidade buscavam
nos jornais que circulavam em outras paragens um pouco de alento para tanta
saudade da amada terra.
Algumas
de suas crônicas nos levam às lágrimas. Ninguém lê “Giovana – o pássaro ferido”
e sai incólume, não há como não sentir no próprio peito a emoção do encontro e
a dor da perda da filha amada, que Déa, com maestria e doçura, consegue
transmitir em palavras:
“Hoje,
final de outubro, escrevo para você ‘Gió’... Quantas são as lágrimas descendo
no meu rosto... Esta você não mais vai digitar... Deus achou melhor levá-la
para o grande computador do céu... Mas, pode ter certeza: amamos você, na sua
vontade de voar, eu, pássaro ferido pela vida... Voe pelo infinito – como você
desejava – minha filha...”
Em
abril de 1983 Déa Cruz toma posse na Academia de Letras de Campina Grande,
honrando a cadeira 9, tendo como patrono Clementino Procópio e sendo saudada
pelo inesquecível Amaury Vasconcelos, imortal e presidente-fundador da Academia
de Letras. Por quase trinta anos Déa abrilhantou a Casa com sua verve.
Além
da inteligência prodigiosa, do amor devotado a seus filhos e esposo e a
dedicação desmedida ao ensino, à cultura e às letras, a neta de Neco Belo
possuía no sangue a alegria, a beleza das cores, do brilho, e era com essa
paleta que Déa coloria a vida contando e recontando as histórias da Campina dos
seus amores, tão grande e generosa quanto seu coração.
Ocupar
a cadeira 9 da Academia de Letras de Campina Grande deixa-me ainda mais honrada
pelas histórias dos vultos que ela simboliza. Que eu possa, pois, aprender com
seus exemplos e ajudar a construir, com esforço e dedicação, um legado que
venha a contribuir para o engrandecimento dessa Casa.
Muito
obrigada.